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S. Tomas de Aquino ou a Fé e a Razão, por Guy Augé (1974)
Tal como a lei revelada, também a lei natural é uma manifestação da vontade divina. Se a Igreja é a guardiã da Revelação, a lei natural é por ela própria acessível a qualquer inteligência pela observação do real. Ora a política é tão natural como a Cidade: por isso quando S. Tomas quando trata da ciência política não hesita em integrar o pensamento dos sábios pagãos de tal forma a Fé e a razão não se podem contradizer. Rompendo com o providencialismo augustiniano do seu tempo, sem cair no naturalismo dum Siger de Brabante, ele reavalia a natureza humana que a Graça realiza sem nunca a destruir.
Um tomismo pouco e mal conhecido (título de VLR)
Há cerca de setecentos anos S. Tomás de Aquino morria no convento beneditino de Fossanova, com 49 anos. Ele deixava uma obra importantíssima, na qual a mais pura mística se aliava às especulações filosóficas mais audaciosas da Cristandade contemporânea.
Mas enganar-nos-iamos totalmente se pensássemos que a sua ascensão foi triunfal e irresistível a partir do século XIII; na realidade ele conheceu, quer o sucesso, quer as críticas, quer as condenações. Mesmo após a sua canonização pelo papa de Avinhão João XXII (em 1323), as suas posições doutrinais mantiveram-se muito controversas.
Precisamente porque este autor suscitou tantos entusiasmos e tão fortes alergias, que “a questão S. Tomás” se coloca: símbolo do clericalismo dogmático e do obscurantismo medieval para uns, ele é, para outro, o intelectual por excelência, o filósofo completo.
Foi sobretudo a partir da encíclica “Aeterni Patris” de 1879 que a Igreja católica privilegiou a sua filosofia. Mas ser assim promovido a “Doutor comum da Igreja” foi, na opinião do Pe. Chenu, “a maior catástrofe que lhe poderia acontecer”. O facto é que para certas mentes prevenidas, uma tal etiqueta equivale a priori ao descrédito dum filósofo.
Além disso, reconheçamo-lo, fizeram muito mal a S. Tomás da Aquino; muitos eclesiásticos e moralistas, que, no fundo, não escapando à atracção das filosofias modernas idealistas e racionalistas, designaram como tomismo muita coisa que nada tinha a ver com ele; outros como o próprio Pe. Chenu que, sob pretexto que S. Tomás, no século XIII, tinha “baptizado”Aristóteles, pensaram ser possível e desejável, mutatis mutandis, fazer um baptismo com o grande pensamento subversivo da nossa época, o de Marx. Convém estar de sobreaviso para estes desvios, frequentemente apresentados por almas bem intencionadas, para tentar apreciar o Aquinate como ele merece e descobrirmos a razão da sua actualidade.
Tentaremos mostrar, ainda que resumidamente, a originalidade de S. Tomás na sua época, e em seguida a sua actualidade.
A ORIGINALIDADE DE S. TOMÁS NA SUA ÉPOCA
O século XII: entre augustinismo e aristotelismo
Contrariamente às ideias feitas, o século XIII não foi uma época de conformismo intelectual e religioso; pelo contrário foi um período de viva ebulição, marcado pelo crescimento das cidades, pelo renascimento do poder régio, da actividade económica, pelo início do refluxo feudal. Foi o tempo das ordens mendicantes e das universidades, dois fenómenos urbanos.
Ora S. Tomás de Aquino de ascendência nobre (a sua avó paterna era irmã de Frederico de Barbarussa), tinha tido, para decepção da sua família, uma vocação de dominicano, ao passo que a família queria que ele fosse beneditino, e ele iria passar a sua vida nas novas Universidades, esses foros da vida intelectual que não tinham esperado pela nossa lei de orientação para constituir comunidades de mestres e estudantes “autónomas, cogeridas e contestatárias”.
O ensino da Alta Idade Média era unicamente religioso:
as escolas carolíngias facultavam-no na proximidade das igrejas ou dos mosteiros para o serviço do culto e da liturgia.
Só a Escritura era fonte de conhecimento, a filosofia pagã parecia ultrapassada na sequência da Revelação.
A tendência dominante era augustiniana, em teologia, em filosofia, em política ou em direito; este augustinismo, influenciado por Platão e pela mística neo-platónica, defendia a doutrina da “iluminação divina”, a impotência da razão natural, o positivismo sacral de todas as fontes de conhecimento.
Mas, a partir do século XII, principalmente em certas cidades (Paris, Chartres, Montpellier, Bolonha, Oxford), começou-se a estudar isoladamente cada um dos autores pagãos; indagou-se as artes profanas quanto às verdades fundamentais em favor de uma curiosidade alargada pelos diversos contactos com o mundo árabe, com Bizâncio e os manuscritos gregos. De Toledo a Nápoles empreendeu-se a tradução e recolocou-se em circulação os filósofos pagãos esquecidos, nomeadamente a Física e a Metafísica de Aristótoles com os comentários muçulmanos (Avicenas, Século XI, Averróis, século XII) ou judeus (Maimónides, século XII), É o grande Renascimento do século XII.
Naturalmente este afluxo de cultura não cristã não deixou de suscitar a contestação e a oposição às doutrinas tradicionais.
No início do século XIII, a emergência das Universidades, que deixaram de depender das autoridades locais locais para se colocarem unicamente na dependência do Soberano Pontífice, permitiu abrir mais livremente os programas aos autores profanos, latinos ou gregos.
O sucesso de Aristóteles foi considerável.
Na Faculdade das Artes, a invasão foi muito longe:: Siger de Brabante era francamente “averroista”, difundindo um Aristóteles naturalista não expurgado. Ele acreditava na eternidade do mundo e professava a doutrina da “dupla verdade” (racional e religiosa).
Nesta altura, a medicina, a moral, ou mesmo a teologia são mais ou menos influenciadas. Certos religiosos, tais como os franciscanos, resistem ferozmente a estas novidades subversivas.
Tomás de Aquino sob a influência do seu mestre Alberto o Grande, pelo contrário, adopta desde logo uma posição de abertura. Esta manifesta-se a todos os níveis, teológico, filosófico e político.
Uma Teologia Humanista
S. Tomás sendo antes de mais um teólogo, foi a sua teologia que comandou o conjunto das suas perspectivas.
1) Ele reabilita a inteligência humana sob a luz de Deus. Com efeito, Deus não é somente o Cristo Redentor mas o Criador; visto que tudo vem d’Ele e a Ele regressa, a natureza que é obra sua, exprime também a mensagem divina. Ora a natureza engloba tanto os cristãos quanto os não cristãos, judeus, muçulmanos, pagãos.
Ao fazê-lo, Tomás revaloriza largamente a humanidade e separa-se de santo Agostinho cujo pessimismo antropológico (avivado sobretudo após as suas querelas anti-pelágicas) acentuava os defeitos do pecado original.
Se é certo que a natureza está ferida, ela não é estruturalmente perversa, radicalmente esterilizada pela falha de Adão. A graça completa a natureza mas não a destrói.
Esta reabilitação da natureza, que não disputa a glória de Deus mas que pelo contrário é dEle testemunho, tinha muitas consequências: ela libertava os cristãos do clericalismo e fazia-os descobrir a noção de ordem natural não atentatória do Todo Poderoso.
2) Para tal S. Tomás não sacrificou os textos sagrados, a Bíblia, a fé; ele não é simplesmente posto ao serviço dum naturalismo averroista que teria agitado a Igreja. Este crítico audacioso de santo Agostinho mantém-se sob muitos aspectos “o maior dos augustinianos”. Ele não deixa de ser um clérigo, um discípulo respeitoso consciente de que a inteligência ferida do homem não chega para tudo o que diz respeito aos conhecimentos sobrenaturais, o plano das bem-aventuranças e dos fins últimos. São Tomás não esquece que o homem é uma criatura, à qual a ajuda da Revelação é necessária.
3) Em definitivo, a doutrina tomista quer “distinguir para unir”, com a convicção de que as duas fontes, naturais e sobrenaturais, não podem contradizer-se visto que há uma só verdade vinda de Deus.
A teologia tomista é por isso humanista na medida em que ela redescobre uma certa autonomia da natureza, em que ela sublinha a grandeza do homem criado à imagem de Deus, e a dignidade da sua inteligência. De certa forma ao fazê-lo, ela separa-se de um integrismo clerical no qual a patrística antiga tinha tendência em fechar-se.
Mas o combate de são Tomás desenrola-se constantemente em duas frentes; recusando o fideísmo anti-intelectualista que cria um abismo entre a razão e a fé, ele não aceita a aberração contrária dum racionalismo exacerbado, dum “naturalismo” ao qual levava o “averroismo latino” de alguns dos seus contemporâneos. Ratio confortata fide: sem nunca abdicar da inteligência, ele atribui-lhe a sua finalidade própria e observa a complementaridade de planos.
O tomismo é uma visão global onde a filosofia prepara os caminhos da teologia, da mesma forma que a teologia conduz esta filosofia ao seu termo visto que a natureza existe para a graça da mesma forma que o homem existe para Deus.
Uma filosofia realista
De qualquer das formas, o humanismo teológico de são Tomás abria por assim dizer uma via filosófica extremamente audaciosa: com esta base ele pode integrar o pensamento cristão de Aristóteles numa perspectiva cristã.
Tal como Aristóteles, são Tomás é um realista;
ele não distingue a fenomenologia da ontologia;
ele pensa que as coisas existem, realmente e distintamente para além de nós;
que o mundo criado tem um sentido; que o real é inteligível.
Na origem dos nossos conhecimentos naturais, encontramos a experiência sensível, a observação. O filósofo põe-se à escuta da natureza, ele ausculta-a, ele procura nela valores diríamos nós. Porque a natureza tomista, como a de Aristóteles, não é a física mecanicista dos modernos; ela é rica e densa, ela forma um complexo de ser e de dever ser, de Sein e de Sotten, ela encerra ordem, harmonia, beleza, justiça.
O intelectualismo de são Tomás recupera e baptiza assim, contra os teólogos voluntaristas que contra ele se enfureciam, os temas gregos da ordem natural e do direito natural. Ele mostra que estas hipóteses se articulam maravilhosamente com uma teologia cristã bem compreendida.
Melhor ainda: o Deus de Aristóteles era vago inconsistente, ao passo que os cristãos receberam dele verdades definitivas. Assim há uma convergência entre a Revelação do Alto e aquilo a que Aristóteles tinha conseguido chegar com as suas observações.
Naturalmente que a especulação pagã reduzida à sua única dimensão material mantém-se incompleta; mas S. Tomás, em vez de a repudiar em nome da sua fé, retira dela a melhor parte e sublinha aquilo a que chama as “conveniências”, isto é, as complementaridades entre o conhecimento sensível, razão e Revelação.
Aproveitemos igualmente a ocasião para sublinhar a diferença entre a atitude de S. Tomás ao baptizar Aristóteles e o aventureirismo criptomarxista de alguns “tomistas” contemporâneos: o que o autor da Suma Teológica assumia à luz de Cristo era uma filosofia da ordem natural, fruto de um raciocínio correcto; outra coisa é o pensamento marxista pós-cristão, antinatural, que é uma forma de profanação. Mesmo se, sob determinados aspectos, ele é uma reacção contra o idealismo e o nominalismo individualista dos Modernos, o seu regresso ao real é incompleto, parcial e comprometida. Não se baptiza o marxismo: é-se por ele triturado, a não ser que se consiga reencontrar um realismo integral.
E o que caracteriza o realismo tomista é a abertura para todas as verdades parciais, a sua capacidade universal de acolher todas as opiniões sérias, independentemente da sua origem. Catolicismo significa universalidade. O método tomista, retomado de Aristóteles, é o da confrontação, do diálogo debate. As diversidades devem ordenar-se em direcção à unidade superior da verdade mas sem se confundir; só que esta verdade no mundo da natureza, nunca é definitivamente atingida; é preciso acolher permanentemente novas abordagens, pontos de vista específicos na busca da verdade, na investigação do real. Daqui resulta que S. Tomás, longe de ser o dogmático rígido que a caricatura por vezes apresenta (e que muitos manuais neo-tomistas infelizmente confirmam!), continua a ser um pensador surpreendentemente disponível, que pratica a “dialéctica” no sentido tradicional (não marxista!) do termo.
Este pluralismo de pontos de vista, saliente-se mais uma vez, não exprime de forma alguma na obra de S. Tomás um relativismo céptico, mas uma disciplina do pensamento em face da incomensurável riqueza da verdade. A realidade concreta, integralmente observada, não só na sua dimensão quantitativa mas também qualitativa, se bem que inteligível, é prodigiosamente complexa, e por isso algo misteriosa, opaca. Podemos aproximarmo-nos dela sem no entanto a apreendermos totalmente. O método de S. Tomás comprova-se facilmente na sua política.
Uma política natural
Mesmo se ele escreveu relativamente pouco sobre política, a influência enriquecedora do baptismo de Aristóteles é nela bem patente.
1) Ele começa por restaurar a política do estagirita. Com efeito, de acordo com o augustinismo sacral que defendia uma política directamente retirada das Escrituras, S. Tomás considera que a ciência política provem do pensamento profano. Daí, neste campo, ele preferir referir-se antes à Política de Aristóteles do que à Bíblia.
Numa famosa passagem da Suma Teológica (a II, 104-105), ele enumera cinco tipos de leis.
A Lei eterna exprime o plano divino do Criador para a criação, mas por ele mantida em segredo, e por isso impenetrável para a nossa inteligência limitada.
A Lei natural é uma participação, uma projecção desta lei eterna na natureza, na criação. Pode de resto por análise, descobrir nela dois aspectos diferentes; primeiro um lei natural moral (de tipo paulino, neo-estóico, ou augustiniano), inscrita no coração de todos os homens e cujo conteúdo é muito geral: “fazer o bem, evitar o mal”. Lei é uma lei jurídica ou política, da qual se possa retirar um qualquer código imutável de direito natural, como por vezes se crê. Chama-se igualmente lei natural à projecção do plano de Deus sobre as coisas visíveis, sobre a natureza global (e não apenas na consciência individual de cada homem): mas uma lei não é um dado adquirido, há que descobri-la pela observação constante, pelo confronto dialéctico. É dela que nascerá um direito natural de tipo aristotélico (profano).
Vêm também por fim
a lei do pecado que aqui pouco nos interessa, dois outros tipos de leis;
a lei humana, jurídica e positiva, criada pela vontade do legislador para por termo, por meio de conclusões ou de determinações, no momento considerado oportuno, a interminável busca dialéctica: esta lei é uma subordinação da razão ao bem comum; de seguida
a lei divina voluntária, que é a Revelação.
É evidente que a lei divina revelada desempenha um papel essencial na obra de S. Tomás de Aquino; mas este papel não é de ordem política. Porque os cristãos já não estão ligados por regras político-jurídicas do Antigo Testamento, dirigidas unicamente aos Hebreus; quanto à Nova Lei evangélica, o seu objecto não é político. Ela encerra uma mensagem espiritual de salvação, não a Revolução nem o novo direito. Para estas matérias temporais, Deus deixou a liberdade ao homem, humani arbitrio, o cuidado de decidir. É por isso que S. Tomás, sem qualquer problema, irá buscar as soluções políticas da cristandade aos filósofos ou pensadores pagãos: Cícero, Séneca, Platão, os juristas romanos (que ele tão bem conhecia) e, acima de tudo, Aristóteles.
A Política de Aristóteles, que a Alta Idade Média tinha ignorado, mas que os Árabes e os Bizantinos voltavam a divulgar, expunha uma doutrina realista, indo ao fundo dos assuntos e colocando a verdadeira questão da finalidade da política. S. Tomás não se limita a tirar conclusões estereotipadas; ele retira dela aquilo que ele tem de mais vivo, o método Dialéctico e não sistemático, ele conversa, toma em consideração as opiniões autorizadas, procura o bem comum e o justo natural numa observação integral da natureza social. Para o fazer ele recorre por vezes às conclusões de Aristóteles; mas, mais ainda, ele prolonga-o a partir das novas realidades do seu tempo.
2) Daqui o seu contributo pessoal e cristão. Por exemplo, S. Tomás retoma a classificação aristotélica dos regimes, e o elogio de uma constituição mista; mas apesar de tudo ele prefere a monarquia temperada, mais adaptada aos vastos reinos da época, e que S. Luís (que ele conhecia pessoalmente) tão bem encarnava.
E sobretudo, houve para os cristãos a revelação dos fins sobrenaturais da humanidade. Para Aristóteles, a única finalidade era de ordem temporal: ela consistia no “bem viver” da Cidade. As bem aventuranças criam em S. Tomás a obrigação de completar a ciência pagã: ele faz esta adaptação sublinhando sucessivamente
- o primado do espiritual
- a insuficiência da política
- a autonomia do Estado no seu campo
As análises de S. Tomás ficaram célebres e são um testemunho da sua profunda compreensão do pensamento de Aristóteles que ele desenvolve sem trair. Ele é um defensor do meio termo entre o poder público e o individuo, reconhecendo o carácter natural das sociedades, repudiando a democracia, aprofundando a origem da autoridade. No essencial, como sabemos, o tomismo nascente. liberta o Estado do augustinismo político e favorece as prerrogativas do poder temporal ao reactualizar o dualismo cristão de Deus e de César. A política é natural como a Cidade.
Teólogo humanista, filósofo realista, defensor do direito natural, são as características que definem brevemente, S. Tomás no seu século. Será que ele ainda pode ser uma referência para a nossa época? Em que é que consiste a actualidade de S. Tomás no século XX?
A actualidade de São Tomás de Aquino nos nossos tempos
Antes de esboçar alguns elementos de resposta há que esclarecer uma ambiguidade: a do tomismo dos tomistas e dos neo-tomistas.
De São Tomás aos tomistas
A morte de S. Tomás não pôs termo à vida e à difusão do tomismo, cuja influência na Europa Continental foi forte. E no entanto, poder-se-ia falar igualmente de um fracasso de S. Tomás na medida em que a sua inteligente e frágil síntese afinal de contas não conseguiu triunfar duravelmente, quer porque com o regresso do clericalismo augustiniana ou do racionalismo pagão ela foi repudiada, quer porque, e talvez ainda mais grave, de S. Tomás aos tomistas houve uma mudança que veio cristalizar o realismo inicial do Mestre.
Na realidade a história do tomismo continua por escrever: um assunto apaixonante mas extenso! Pudemos aperceber-nos do papel dos tomistas por exemplo,
na expansão do direito romano
na legislação positiva (quer pontifical quer régia), tudo o que está ligado à redescoberta fundamental da noção aristotélica de direito natural
e à revalorização das competências da doutrina profana no mundo jurídico-político.
O desenvolvimento da ciência política deve igualmente muito à redescoberta feita por S. Tomás de Aquino da Política de Aristóteles; Bodin, Locke, Montesquieu (e muitos outros modernos com eles!) inspirar-se-ão no Estágirita; mas foi o Aquinate que a difundiu.
A difusão do tomismo tomismo é algo de duradouro e difundido:
no século XVI para lutar contra os teólogos protestantes de inspiração augustiniana, a Contra-Reforma católica redescobre com grande vantagem S. Tomás que serve de padrão à escolástica tardia.
mas certos humanistas protestantes, apesar do desprezo que Lutero nutria por aquele a quem chamava “o grande porco”, não hesitarão em adoptar uma via de regresso ao tomismo e ao direito natural: basta citar o caso de Melanchthon, de Grotius, de Leibniz.
No entanto, não nos iludamos: nestas referências a S. Tomás escondem-se muitas infidelidades. Respeitava-se mais a letra do que o espírito. É que de S. Tomás aos comentadores neo-tomistas muitas novas doutrinas vinham encobri-lo.
É sabido que em 1277, o tomismo foi condenado pelo bispo de Paris, e que o foi igualmente em Oxford um pouco mais tarde.
Nos séculos XIV e XV foram os escotistas e os nominalistas e os nominalistas que levaram a escolástica a um beco sem saída. A autentica postura tomista necessitava de uma grande erudição, que se irá perder em proveito do pedantismo ou do simplismo.
Os inspiradores da segunda Escolástica, independentemente do mérito de terem relançado S. Tomás, já não têm nem a sua grandeza nem a sua pureza especulativa.
Totalmente decadente no século XVIII e durante grande parte do XIX, o tomismo ressurgiu uma vez mais graças à encíclica Aeterni Patris. Mas fê-lo precisamente na senda dúbia dos comentadores do século XVII. Mesmo un Jacques Maritain deve muito a Cajetan, e não é seguramente o melhor do seu Suvre.
O contributo permanente de S. Tomás
Onde está então o essencial da tradição tomista?
É necessário responder, de uma forma algo abstracta continua a ser actual devido à sua ontologia realista e ao seu método. Expliquemo-nos brevemente.
Da mesma forma que não tinha sido por mero acaso, ou por uma simples questão de moda, que S. Tomás tinha privilegiado a doutrina de Aristóteles a todas as outras da Antiguidade pagã, também não foi por fantasia de Leão XIII que S. Tomás foi distinguido por entre uma longa série de escolásticos.
Aparentemente esta escolha poderia parecer infeliz e a contra-corrente: ela levava-nos de volta à Idade Média, para o passado, para um neo-paganismo que próprios cristãos tinham considerado suspeito; ele convidava os autores católicos modernos a ler um autor latino quase impossível de traduzir em francês, e dependente de uma física paripatética largamente ultrapassada. E afinal de contas, não há física, ou química, ou matemática cristãs: será que era verdadeiramente necessário encerrar as filósofos num sistema?
Na realidade, a atracção do tomismo deve-se precisamente ao facto de não ser um sistema, um desses “idealismos” que só querem considerar um aspecto particular do real.
Partindo de uma observação integral da natureza global: ele propõe um método, um procedimento de investigação da verdade.
Longe de oferecer soluções já feitas, que bastaria adaptar de uma forma segura, ele convida antes à investigação, a um constante trabalho de discernimento, de um julgamento prudente.
Ele não dispensa o esforço, ele estimula-o.
Ele não está dependente daquilo que teria efectivamente perecido na Física aristotélica; e estas suas soluções apenas afectam a erudição; mas a forma como ele o conseguiu no seu tempo, eis aquilo que é para nós notável.
Tal como se dizia frequentemente no século XIX nos próximos do Cardeal Mercier, S. Tomás deve ser um farol e não um marco: não um limilite, mas um estímulo de abertura para continuar a interminável busca.
A crise do mundo moderno é antes de mais uma doença da inteligência: e S. Tomás é um excelente médico para todo o tipo de perversões intelectuais. Ele protege-nos destes obstáculos, destas tentações permanentes do pensador que são:
o optimismo exagerado que gostaria de estabilizar a natureza, como se esta não fosse instável, e como se a humanidade não estivesse ferida, e como se o nosso fim último não fosse sobrenatural.
ou o pessimismo desesperado que neste mundo nos abandona ao despotismo dos demónios para nos refugiarmos numa mística consoladora.
O intelectualismo tomista coloca a inteligência à escuta do seu Criador nas próprias coisas. E isto nada tem de surpreendente para as mentes modernas, imbuídos ainda que inconscientemente de um criticismo kantiano ou de fenomenologia. É caso para nos interrogarmos se a física qualitativa está assim tão ultrapassada, tão ridiculamente caduca quanto nos dizem, e se ela não tem alguma terapêutica secreta.
Para além de S. Tomás
A inteligência é intemporal. A verdade não é um produto da História. Uma verdade bimilenar. Uma verdade só porque tem dois mil anos não deixa de o ser da mesma forma que uma que um disparate só porque é moderno não deixa de o ser. No entanto seria um erro pensar que o tomismo ignora a história; ele simplesmente convida-nos, como sempre faz, a evitar esses dois malditos extremismos que são o fixismo e o historicismo.
Alguns neo-tomistas, esquerdizados pela influência do mundo, sonharam com uma lei natural substancial e imutável, da qual se poderia facilmente deduzir uma doutrina social e política mais ou menos completa. Eles de resto confundiram significativamente, o conteúdo da Ia IIae sobre a lei natural com o que diz respeito ao direito e à justiça particular (IIa IIae; cap. 57 e segs.). Algo no qual os críticos evolucionistas se deixaram embrulhar, a lei é variável e a história arrasta tudo.
Mas o realismo integral deve ter em conta todos os aspectos do real, há que reconhecer que a história, ou se se quiser a historicidade, também faz parte da natureza. Só que a natureza não se reduz à historicidade como os modernos peritos em dialéctica afirmam adoptando uma postura inversa do erro fixista. Há igualmente na natureza uma componente de constância, de continuidade; e os valores são precisamente aquilo que deve ser mantido ao longo do tempo, que deve perdurar. A mudança em si mesma não é um valor, e o sentido da história é-nos desconhecido antes do final dos acontecimentos.
Da mesma forma que havia em S. Tomás uma modernidade que não era de forma alguma modernismo, ele tinha na sua visão da natureza uma historicidade que não era historicista; a tensão da potência ao acto, o movimento em direcção às causas finais exprimem no vocabulário aristotélico-tomista uma percepção evidente da mobilidade; mas o mérito do tomismo é precisamente o de recusar de pensar o real sob uma só categoria, independentemente de ser a da estabilidade ou da mudança. Isto porque ele não é um sistema, mas um realismo.
De resto, por este facto, a observação tomista das realidades políticas e sociais, se bem que assentando na experiência, e tendo em conta as mutações da natureza, não pode ser confundida com o sociologismo contemporâneo que é axiologicamente neutro, isto é, cego para os valores. A observação tomista é selectiva, qualitativa. Ela busca os bons modelos, as Cidades e as sociedades justas, isto é os valores.
No total o pensamento de S. Tomás (como é frustrante de tentar resumir assim tanto quando o original é geralmente tão límpido!) respira exactidão e o bom senso: a sua modéstia é a medida da sua profunda sabedoria. Após sete séculos, ele deixa-nos:
um modelo de realismo
uma concepção sempre praticável do direito natural,
uma distinção nítida do espiritual e do temporal (que os catolicos progressistas deveriam ler)
uma doutrina sobre os limites e a legitimidade do poder temporal
melhor ainda talvez, a garantia do primado da verdade
O que está por detrás desta sabedoria? A palavra profunda de um dos seus discípulos, João de São-Tomás, retomada por vários papas, comentada por Maritain e Gilson mostra-nos a chave: “Há algo de maior que S. Tomás que é recebido e defendido em S. Tomás, majus aliquid in sancto Thoma quam sanctus Thomas susoptur e defenditur”.
A reverência para com S. Tomás está para além da sua pessoa; não se trata de inserir uma espécie de parênteses medieval anacrónico no presente (independentemente de gostarmos ou não de S. Tomás), mas a manter no presente a actualidade do eterno, la philosophia perennis, não para destruir mas para purificar e para assumir aquilo que o merece.